quinta-feira, 26 de maio de 2011

O dia em que vi o pôr do sol nascer

O título é estranho, eu sei, mas foi assim mesmo. Tarde dessas, acompanhei um pôr do sol do começo ao fim, do seu nascimento à "morte". Só então me dei conta de que aquela beleza toda acontece todos os dias e eu nunca vejo. Na correria do dia a dia, quantas coisas lindas assim nascem, e a gente não vê?

domingo, 3 de abril de 2011

O olhar da anã

Se a anã não tivesse me olhado com tanto medo, eu teria voltado? Se, durante aquele brevíssimo instante, nossos olhos não tivessem se encontrado enquanto andávamos, e as duas não tivessem o mesmo olhar de horror, eu teria diminuído o passo e andado ao lado dela até o final do viaduto? Mas a anã continuou seu caminho, não sem antes olhar para trás ao me ver parada, sem saber o que fazer.

Eu não tinha nenhum plano. Como todas as dezenas de pessoas em pleno horário de rush que passavam por aquele viaduto, à noite, bem em cima da avenida 23 de Maio, tudo o que eu queria era chegar logo à faculdade para assistir a colação de grau de um amigo, ainda mais porque, para variar, eu estava atrasada. Mas havia o olhar da anã e havia a menina. E eu parei.

Parada, fiquei um tempo olhando para aquele corpo. Deu para ver que, como eu, várias outras pessoas notavam que ela chorava e passava as mãos nos cabelos negros e longos, em desespero, balançando-se junto à grade do viaduto. Não sei de que cor a grade é durante o dia, mas pareceu-me de um vermelho-vinho de alguma forma desagradável. As pessoas olhavam, por um momento viravam as cabeças, sem diminuir o passo. Seria curiosidade ou algumas delas também teria o olhar da anã?

Encostei-me na grade, mas eu estava a muitos passos da menina para que ela me notasse. Na verdade, ela não parecia ter condições de notar alguma coisa, além dela mesma.

Pessoas se jogam de prédios e viadutos. Pessoas se jogam nas linhas de trem e metrô. Pessoas se matam o tempo todo. Isso só não é divulgado. A imprensa diz que é para evitar o “efeito Werther”, referindo-se à obra de Goethe que levou uma boa quantidade de jovens românticos a botar fim na vida. Seria uma forma de não incentivar mais suicídios. Mas eu acho que tanto a imprensa como as famílias e todo o resto só não fala em suicídio porque isso é mais tabu do que a morte “simples”, aquela que chega pelas mãos da natureza, do tempo, do destino, do acaso ou de Deus, dê o nome que quiser. Mas o fato é que pessoas se matam.

Ou simplesmente pensam em se matar. O que é uma espécie de ensaio, senão para o próprio suicídio, para alguma espécie de autodestruição, que poderá vir de mil maneiras. Faz mal pensar em morrer, embora isso seja mais comum do que as pessoas gostariam de admitir.

Sinceramente, não achei que a moça iria se matar (embora no fundo não descartasse de todo a possibilidade). Mas não conseguia deixar de observá-la, de longe. O diabo é que, se ela tentasse alguma coisa, nem à velocidade da luz eu conseguiria chegar a tempo de ajudar. Acho que fiquei esperando alguns minutos na vã esperança de que aquilo tudo acabasse e ela ficasse bem e fosse para casa. Mas isso não aconteceu. Pelo contrário, ela colou o corpo magrinho à grade e ali ficou, mais quieta, sem se balançar tanto.

Eu não sabia se isso era bom ou mau sinal e já estava me achando idiota, parada ali. Pensei em todas as vezes em que fiquei pendurada em alguma janela, olhando para o infinito lá embaixo, pensando que bastava um leve movimento. E nas vezes em que contemplei o metrô vindo até mim, assassino. E da vez em que, finalmente decidida a pôr fim na vida, subi mais uma vez ao topo do prédio que fica no topo de um lugar altíssimo, e só não aconteceu porque naquele dia, justo naquele dia, o zelador lembrou de trancar a portinhola que fecha a entrada para a cobertura do edifício, o maldito. E da arma no peito que falhou. É difícil, depois de uma dessas, reunir nova energia para uma tentativa assim mais séria. E então a gente vive.

Mas houve vezes em que fiquei bestando em atitudes não muito normais e, se alguém olhasse para mim, talvez tivesse estranhos pensamentos. Não tinha, então, nenhuma ideia de suicídio, era só desespero mesmo. Podia ser o caso da moça de cabelo comprido. Mas como saber?

E tinha a anã. Ela estava com medo também. Deixou todo o trabalho para mim, a danada. Eu vi nos olhos dela. O medo. Talvez ela já tenha se balançado perigosamente entre o lado de lá e o de cá. Talvez ela também entenda dessas coisas.

Então me lembrei de um texto que eu mesma havia escrito recentemente, para um blog, dando dicas para amigos e familiares sobre como cuidar de portadores de transtorno bipolar em crise. Deixando essa coisa de doença mental de lado e mantendo a crise, eu me lembro claramente de ter escrito algo como “apenas esteja lá”.

Eu escrevi isso porque na maioria das vezes em que precisei, ninguém esteve “lá”. Mea culpa, afastei muita gente e aí fica difícil manter-se por perto. Mas a verdade é que muita gente me viu grudada em grades de desespero, pendurada em janelas de tristeza, à beira da linha amarela da angústia, e ninguém fez nada. Houve quem “estivesse lá”, fisicamente mesmo, e simplesmente foi embora. Tem aqueles que dizem que vão estar lá, mas nunca aparecem. É difícil “estar lá”.

Eu estava lá, por obra do destino, mas mais certamente por obra do olhar da anã. Resolvi não pensar em nada. Eu não tinha um plano, uma ideia, uma forma de “chegar lá”, não sabia o que me esperava e, sinceramente, eu tinha medo. Fui andando devagar até ela, que mantinha a cabeça baixa. Fiquei à distância de um corpo entre nós duas e ali me mantive por uns bons minutos, em silêncio, olhando o movimento de uma das mais enlouquecidas avenidas de São Paulo, bebericando calmamente golinhos de uma garrafa de água que eu tinha comigo. Nenhuma das duas falou nada pelo que me pareceu um longo tempo. E, estranhamente, eu me senti muito calma.

Então eu menti:

- De vez eu quando eu venho aqui para pensar. Ou nem penso em nada, fico só olhando.

Silêncio do outro lado.

- Meu nome é Margarete, mas pode me chamar de Maga. Quer um gole de água?

- Não, obrigada – ela respondeu, tirando os cabelos da frente dos olhos inchados.

- Eu trabalho aqui perto, mas é que estou indo para a colação de grau de um amigo, aqui na Unip. – Isso era verdade.

- Eu estudo na Unip.

Foi a deixa para eu entabular uma conversa sobre o curso que ela fazia – biomedicina.

Tagarelei (eu sou boa nisso):

- Faz muito tempo que eu estudei biologia, só no ginásio, mas tinha genética e era a única coisa que eu gostava. Aliás, eu gostava tanto que achava que queria trabalhar com isso. – eu disse isso e mais algumas bobagens, numa velocidade meio atordoante.

- Eu escolhi biomedicina por causa de genética.

Ponto para mim, e por acaso! Eu não tinha mentido sobre o lance de genética. Eu realmente era doida por genes recessivos, dominantes e aquelas ervilhas todas. No ginásio, claro. Agora é ensino médio.

Então, num jorro, ela reclamou de tudo. Da faculdade, que não ia bem, pois estava pendurada em DPs. Do trabalho, do qual não gostava, mas era necessário para pagar uma faculdade que ela não tinha certeza se queria mesmo fazer. Da família, que parecia não estar nem aí. Ela disse:

- Não tenho amigos. Quer dizer, tenho um ou dois, mas acho que ninguém gosta de mim.

- Eu gostei de você e nem te conheço. – mandei, na lata. E não era mentira porque eu sentia um carinho imenso por uma menina de seus vinte e poucos anos que estava passando por coisas que eu havia passado, talvez a vida inteira: rejeição, insegurança, desespero.

E então aconteceu algo inesperadamente bom. Ela sorriu, estendeu a mão e disse:

- E eu nem me apresentei! Prazer, Daniela, mas pode me chamar de Dani.

- E você pode me chamar de Maga, lembra?

- Lembro.

Ela me contou dos problemas na faculdade, aqueles que as pessoas que não têm muita certeza do que querem na vida sentem, principalmente quando o curso está terminando e começa a pressão pelo emprego naquela área. Deve doer. Não passei por isso, tive sorte de escolher minha profissão ainda criança, mas está cheio de gente por aí que demora anos para descobrir “o que quer ser quando crescer” e nem sempre os pais estão preparados para ajudar da forma certa.

Dani me disse que tinha 24 anos. Eu lhe disse, então, que ainda era jovem e muita coisa poderia acontecer, desde ela descobrir algo em biomedicina que era seu caminho ou descobrir, ainda, um outro caminho. O segredo era se manter ligada nas coisas que ela gostava de fazer.

- Gosto de genética.

- É um bom começo.

Então me falou dos alunos brilhantes da sala de aula e de como se sentia burra, como não conseguia alcançar os outros. Não sei o que dizer nesses casos, não sou psicóloga nem pedagoga. Mas disse que ela estava se cobrando demais.

- Todo mundo me diz isso.

- Você está no fim do curso, não está? Largar no final me parece desperdício de grana e energia, já que você chegou até aqui. Por que não vai resolvendo as coisas na sua vida por prioridades? Parece que você quer resolver tudo de uma vez e isso geralmente não dá certo. Pelo menos, nunca deu para mim. Olha, tenho mais de quarenta anos e estou começando outra carreira agora. Voltei a estudar, fazendo um mestrado. Você deve me achar uma coroa e que eu devia é ficar quieta na minha, mas a verdade é que a gente vai mudando com o tempo e vai descobrindo novas coisas para gostar.

Eu estava adaptando um pouco os dados sobre a minha vida porque ela não é bem assim. Uma das únicas coisas que dão certo na minha vida – senão a única – é essa coisa de trabalho e estudo. O resto é caos. Mas está melhor hoje. Vai ver é porque minha vida se resume a trabalho e estudo. E é claro que eu não sou lá muito boa em priorizar coisas. Como Dani, eu também quero tudo aqui e agora. Como é fácil falar. Fazer, nem tanto.

Eu continuei, me sentindo um manual de auto-ajuda de segunda mão:

- Você pega leve com você mesma, termina a faculdade, mata as DPs, tira o diploma. Enquanto isso, fica de olho em novas possibilidades de emprego, nessa área ou em outras que parecerem interessantes.

- O problema é que não sei o que quero. – ela disse.

- Bem-vinda ao mundo! Na maior parte das vezes, a gente não tem lá muita certeza do que quer, mas enquanto você viver tão preocupada, tão grudada numa grade como essa, tão trancada dentro de si mesma, aí não vai ter cabeça para pensar direito ou simplesmente deixar espaço para que alguma coisa boa apareça aí dentro.

Eu já estava alcançando o grau Paulo Coelho de obviedades! Mas o mais importante era tirá-la daquele viaduto e fazê-la sentir-se melhor.

- Eu queria ser melhor. – ela disse.

- Eu também. Pode acreditar nisso. Se eu parar para pensar, piro de vez. – E eu paro para pensar nisso, claro que paro...

- É por isso que não aguento as aulas. Minha mochila está lá na faculdade. Ela assiste mais aula do que eu. Eu não consigo prestar atenção. Tem um cara na minha classe que fica ligado o tempo todo, lê todos os livros, dá raiva!

- É, eu conheço esse tipo de gente... – “Esse tipo de gente” deve ser como eu, os CDFs, nerds, geeks, Hermiones que atormentam os outros. Mas isso eu não disse para ela. – Acho que sua mochila está se sentindo muito sozinha e eu também estou atrasadíssima para a colação de grau do meu amigo. Vamos lá?

- Eu queria chegar na minha colação de grau...

- Não me parece que você está tão longe disso...

Ela se afastou das grades com facilidade e fomos conversando até a faculdade, onde nos separamos. Dei meu cartão para ela e disse para me ligar quando quisesse bater papo, sobre qualquer assunto. Um beijo, um abraço e assim acaba a história.

Bem que eu queria contá-la para a anã.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A Cidade dos Mortos

Se Bocomero não existisse, teria que ser inventada. Mas teriam que inventar também alguém para contar suas histórias, alguém que não fosse de lá porque ninguém na cidade fica contando suas coisas. Claro, se você visitar Bocomero, na remota possibilidade de sentir-se motivado a conhecer uma cidade onde nada acontece, será certamente muito bem recebido. Se o pneu do seu carro furar na estrada e aí então você se vir obrigado a pegar a entradinha da cidade, caindo na praça Olavo Bilac, será muito bem atendido no Posto de Gasolina Prudente. Mas ao contrário do que se imagina dos moradores das cidades pequenas, não, ninguém vai lhe contar causo algum, nenhuma novidade, nem vão lhe convidar para passar a noite lá, por mais furado e estrupiado que esteja o seu pneu. É mais provável que lhe indiquem o hotel da vizinha Canalândia, com a desculpa de que Bocomero não tem hotel, nem pousada, nem nada disso, o que é a mais pura verdade. Mas esquecerão de dizer que a Casa de Torta recebe muito bem seus hóspedes, o que é um lamentável esquecimento.
E levando em consideração que além do pneu, a suspensão do seu carro também está danada, o jeito será dormir em Canalândia e será inevitável perguntar algo sobre Bocomero, mas vão dar de ombros. Há uma certa disputa entre as cidades, isso logo fica claro, e o povo de Canalândia acredita que os bocomerenses são meio malucos. A vantagem é que gostam de contar histórias sobre coisas que desaparecem na cidade, por exemplo. Nesse momento, talvez você se preocupe com seu carro, mas será tolice, pois o Zé, do Posto Prudente, é cioso de seu trabalho e nem um parafuso some naquela oficina há mais de dez anos. Evidentemente, o mesmo não se pode dizer de sua esposa, desaparecida no misterioso caso das vacas sem cabeça. Talvez alguém de mais idade em Canalândia se lembre de lhe contar essa história.
Há várias coisas curiosas sobre Bocomero, a começar pelo nascimento da cidade. Não há registro em nenhuma cidade vizinha e, claro, em Bocomero mesmo cada habitante vai lhe dar uma desculpa diferente para não saber como a cidade surgiu no meio do mato.
Mas enquanto você espera por uma bebida no barzinho do hotel de Canalândia, ao seu lado está um rapaz bege. Todo vestido de vários tons de terra, tem a pele cor de creme e o cabelo ralo cor de caramelo. Ele sorri um sorriso leitoso, suspira fundo e, depois de se conhecerem como estranhos se conhecem em lugares estranhos, conta a você a sua primeira história de Bocomero.

Juca

Ele lhe diz que conhecer a cidade foi a coisa mais maluca que lhe aconteceu, logo ele que, sendo fotógrafo, já viajou por todos os cantos e viu muita coisa.
- Pode me chamar de Juca. Quando conheci a cidade, era o fim de agosto de 1990 e eu andava por uma estradinha secundária, procurando Canalândia no mapa. Alguém havia me contado sobre um lago que era uma tremenda beleza. Achei que renderia umas fotos interessantes e tratei de ir para lá. Mas, no caminho, a moto quebrou. Sabe, essas estradas são de matar. Fui andando de mochila e mapa na mão, procurando uma oficina, ou pelo menos alguém que tivesse uma caminhonete para eu buscar a moto que deixei escondida atrás de umas árvores. Algumas horas depois, encontrei uma pequena saída de terra, sem nenhuma indicação. Estava morto de fome e achei que aquela seria uma entrada para alguma fazenda ou sítio, onde talvez pudessem me ajudar. Porque não havia vivalma na estrada, nem nenhuma casinha à beira do asfalto, e Canalândia parecia estar bem mais longe do que eu imaginava. Peguei a estrada e resolvi dar uns vinte minutos de caminhada. Então, percebi que subia um morro íngreme e fui subindo, subindo, até que, já no alto, consegui ver a cidadezinha incrustada num vale. Pequena, parecia uma montagem no meio do verde, meio assim fotoshop, sabe? De onde eu estava, não dava para ver muita coisa, mas decidi continuar e procurar um boteco qualquer. Desci por uma estradinha que parecia não acabar mais. Cheguei na rua central, a maior e, para dizer a verdade, a única na cidade. Perguntei a um garoto o nome do lugar e aí fiquei sabendo que estava em Bocomero. Procurei no mapa. Nada. O guri, mesmo contra a vontade, me indicou o boteco da cidade. Fui para lá quase trôpego de cansaço e fraqueza.

A história de Juca, que você nunca esqueceu, continuou assim.

- Me dá uma cerveja, por favor!
- Só bebe se comer, foi a resposta do gordo atrás do balcão.
- Como?
- Come o que quiser, mas só bebe se comer. Minha mãe diz que o álcool faz mal em barriga vazia. Está se vendo que o senhor não come há um bom tempo.
- Então, o que tem pra comer?
- Nada. O bar já está fechando e eu não tenho mais nada para servir.
- Mas como está fechando se ainda não é meio-dia?
- Eu fecho para o almoço. O senhor me dá licença, por favor, mas minha mãe não gosta que eu me atrase.
O gordo praticamente arrancou Juca do bar e disse para voltar depois das três, quando acabava o seu descanso da tarde.
- Aí, dona Lourdes traz umas coxinhas e o senhor pode comer alguma coisa.
- Mas estou morto de fome. Onde é que posso comer alguma coisa? Tem algum restaurante na cidade?
- Tem - respondeu o gordo.
- E onde fica?
- Do outro lado da praça...
- Ótimo!
- ... mas se eu fosse o senhor não perdia meu tempo.
- E por quê!?
- Por que o restaurante também está fechado e só abre às três.
- Mas que droga de restaurante é esse que fecha pro almoço?
- É da minha mãe. Ela fecha das 11 às três que é para me servir o almoço. Sou filho único filho, entende? - E saiu sem se despedir nem nada, deixando Juca bege de espanto e branco de fome.
Foi até a pracinha no meio da cidade em busca de um vendedor de cachorro-quente ou pipoca, mas lhe pareceu que todo mundo dormia até as três. Com a barriga roncando, encostou-se numa árvore para descansar e pensar no que fazer. Deu moleza, deu sono, os olhos fecharam.
Aos trancos, foi acordado por um guarda que deu voz de prisão e carregou para a cadeia da cidade. Aparentemente, era proibido dormir na praça. E já estava claro que o guarda era o único em Bocomero que não dormia até as três, justamente para impedir que desavisados e desequilibrados – foi o que ele disse, mais tarde – emporcalhassem a cidade com seus corpos esparramados. Preguiça é pecado capital, ele garantiu, e a cidade já tinha pecados demais.
- Se quer dormir, procure cama! - disse, taxativo, enquanto trancava o fotógrafo na micro-cela da prisão da cidade.
- Mas seu guarda, peloamordedeus, eu não fiz nada errado!
- Pode ser que não seja errado lá na tua terra, mas aqui em Bocomero, é crime dormir fora de casa.
- Quero um telefone, quero meu advogado, isso não vai ficar assim! Até quando vou ficar preso por essa bobagem?
- Calma, homem! É só prisão preventiva. E depois eu vou fechar a cadeia às três e te solto de novo. Mas vê se não volta a dormir na praça...
Às três em ponto, o policial cumpriu o prometido. Carimbou uns documentos que estavam em sua mesa, abriu a cela e cuidadosamente escoltou Juca para fora da prisão e a fechou, como se fosse uma simples repartição pública no fim de seu expediente.
- Me diga, seu guarda. Como é que pode uma coisa dessas? O senhor fecha a delegacia às três, todos os dias?
- Quando tem preso, ela funciona direto, mas nunca tem. Aí, fecha às três, sim, menos aos domingos, porque eu não trabalho nesse dia.
- Sei... E se alguém precisar do serviço do senhor depois das três?
- Moço, depois das três não acontece nada em Bocomero que exija a minha presença...
- Mas, e à noite, não fica ninguém de plantão?
- Não tem como. Sou o único policial da cidade e já trabalho das oito às três, o que você quer mais? Não ganho pra mais que isso, não.
- Mas e se acontece alguma coisa durante a noite?
- Se acontece alguma coisa durante a noite – o que eu duvido ou pelo menos espero que não aconteça – a própria noite trata de resolver antes que o dia amanheça. E é assim que tem que ser. A noite é dos pecadores.
Se a delegacia fechava às três da tarde, o mesmo não se podia dizer do resto da cidade. O restaurante era simples, mas vendia comida de alma e antiguidade, costela de boi com batata, leitão à pururuca, carne de sol com cebola, tudo muito bem acompanhado por arroz branco e farinha, salada de tomate e suco de manga. Lá ele ficou sabendo que havia uma oficina que consertava de tudo na cidade e que – lógico – já devia estar aberta naquela hora.
Se Juca não fosse um exemplar digno da cidade grande, ao andar por Bocomero ele saberia estar “fazendo o quilo”, como diriam os locais, que é basicamente andar para fazer a digestão, com calma e satisfação, um sorriso meio besta perdido nos lábios, que se desfez quando o fotógrafo viu algo que o deixou para lá de exasperado.
Um bando de moleques se divertia na praça desmontando algo. Demorou para ele perceber que era a sua própria moto, Patrícia (ele era um desses sentimentais que se apegam às coisas e lhe dão nomes), que jazia tristemente desmembrada.
Juca espantou os moleques como se faz com pássaros em cima de carniça e lá estava Patrícia, agonizante, mas ainda linda e brilhante em meio ao óleo. Ajoelhado, pegou o banco de couro nas mãos que o havia levado a tantas viagens e ficou olhando, enegrecido, a destruição.
Um dos moleques continuou acocorado por perto, com uma chave de boca na mão, ameaçador.
- Como é que vocês trouxeram a minha moto aqui?
- De monte.
- Como?
- De monte de gente.
- Tá, e onde fica a tal oficina mecânica daqui? Me diz antes que eu te faça engolir essa chave.
O menino sorriu e apontou com a ferramenta.
- Vai até a oficina do seu Zé, lá na esquina da igreja com a Torta.
- Torta? Rua Torta? Que torta, meu Deus?
- A Torta, ué! – e apontou de novo.

Torta

Se Juca fosse bocomerense entenderia que Torta não era uma rua, até porque todas as ruas de Bocomero eram bem retas. Era sim um nome de mulher, a única e gloriosa prostituta da cidade, que ele teve o prazer de encontrar enquanto tentava falar com o Zé da oficina, que estava deitado numa rede, roncando alto.
Sacudiu o homem, chamou, pensou em lhe dar uma marretada e descontar a raiva, quando uma cinquentona muito bonita se aproximou por trás.
- Moço, me desculpe, mas não vai acordar o Zé assim. Ele toma cachaça suficiente para colocar toda Bocomero em coma.
- A senhora me desculpe, mas ele precisa acordar sim, eu não aguento ficar mais um segundo nessa cidade de doido e minha moto está toda quebrada. Sinceramente, só quero ir embora.
- Pra quem é de fora, é bom mesmo ir embora antes do anoitecer.
Juca ia perguntar, mas ela começou a andar para o seu lado, de um jeito gingado. Não tinha mais idade para ficar vermelho, mas sentiu o rosto arder quando ela passou a mão no seu queixo.
- Gosto de homens com barba por fazer.
- Não tem mesmo jeito de acordar esse homem? – Juca conseguiu perguntar enquanto se dava conta de estar excitado.
- Ter, tem.
Ela enfiou a mão na braguilha do mecânico e procurou algo que demorou um tantinho demais para ser encontrado. Depois, mexeu a mão vigorosamente, com perícia, e o homem finalmente acordou, num pulo.
- Ô, Torta... – ele gemeu.
- Levanta, vagabundo, o menino aqui precisa de ajuda.
Juca rezou para que o notassem apenas da cintura para cima, mas Torta, claro, lançou um olhar espero para seu corpo todo, principalmente da cintura para baixo.
- O que é que você quer? – perguntou o homem, arrumando as calças.
- Minha moto está quebrada e...
- Não arrumo moto.
- Escuta, minha moto quebrou na estrada e os meninos da cidade a desmontaram todinha...
- Não gosto de arrumar motocicleta.
- Mas o que eu faço?
Torta, que havia pego uma vara de metal nas mãos, usou-a para cutucar o mecânico por trás.
- Ajuda o menino, vai... – disse, com voz manhosa.
O mecânico pareceu mudar de opinião.
- Onde é que está a sua moto?
- Na praça.
- Não se preocupa, não. Mais tarde mando alguém buscar a dita cuja. Depois a gente vê o que faz. Agora, me deixa em paz e vai embora.
Mas Juca ficou parado, até sentir a ponta de metal que estava nas mãos de Torta bater de leve no seu ombro.
- Vem - disse, numa voz macia.
Ele foi.
Torta levou-o para um casarão de esquina, morada e local de trabalho. Serviu-lhe chá com torradas e bolinhos, que ele não recusou, apesar da barriga cheia.
- Rapazes jovens precisam de muita energia.
Comeu deliciosos bolinhos pingados, cobertos com uma fina camada de açúcar e canela. O chá era mate, com algumas gotinhas de limão. Biscoito de polvilho azedo, sequilho, mantecal. Sonhos. E tortas: limão, chocolate, coco, goiabada.
- Já sei, chamam você de Torta por causa desses doces.
- Não, nada disso. Sou Torta porque não sou direita, entendeu?
Estúpido, com a boca entalada em um sonho recheado de creme, quase engasgou de vergonha com a bobagem que tinha dito. Doces! Que doces? Encheu-se de mantecal para manter a boca fechada dessa vez.
Mas pelo jeito Torta não ligou e depois do chá foram juntos fazer o quilo à sua moda, na cama.
Do sono pesado, Juca só acordou quando a noite era alta com um grito que pareceu vir de dentro de seus sonhos até despertá-lo num susto. Sentou-se na cama e não viu Torta. Teve preguiça de levantar. Veio o silêncio e ele dormiu um sono agitado, do qual acordou. Viu Torta tranquila ao seu lado e acalmou. O sono pesou. Só de manhã, ainda na cama, foi perguntar o que havia acontecido.
- Alguém gritou várias vezes lá fora esta noite. Parecia coisa de quem estava se machucando, e a sério... Mas, sinceramente, estou achando que foi sonho.
- Não foi. Eu também acordei. Tomei um chá e voltei para a cama.
- Como você pode saber?
- A gente sempre sabe.
- E ninguém faz nada?
- Fica quietinho no seu canto e dê graças a Deus por não ter sido você quem estava lá fora. Ouça o que eu digo, se a pessoa foi besta o suficiente para sair pela cidade à noite, então mereceu o que levou.
- Mas o que pode ter acontecido?
- Está morto, é claro, como todos os outros.
Juca se aninhou entre os seios de Torta, confuso, pensando que ela estava exagerando. Acabou dormindo e sonhou com meninos acocorados como urubus, com ferramentas pingando óleo e sangue nas mãos, e uma mulher jazia, linda e brilhante, no chão.

O morto


Lá pelas dez horas da manhã, acordou sentindo que tinha seis anos de idade e estava na casa da tia Marilda. Um cheiro gostoso de bolo de fubá tomava conta da casa, ainda silenciosa. Sentiu-se tão bem que conseguiu espantar os meninos-urubus da cabeça.
Encontrou Torta na cozinha. Enfiada num roupão e sem maquiagem, até que não era muito diferente da tia Marilda, o que lhe deu uma momentânea sensação de ter feito coisa errada durante a noite, mas isso logo passou quando a mulher colocou uma fatia enorme do bolo amarelinho e um pote imenso de manteiga ao lado. Devotou-se então fielmente ao pecado da gula.
Bolo, manteiga, pão sovado, geléia de uva preta, café fresco e leite espumante. E uma mulher de bunda grande, claro. Um homem precisa de pouca coisa para ser feliz de verdade.
- Minha filha, me diz uma coisa, que história é essa de mais um morto na cidade?
- Isso não é assunto para café da manhã, Juquinha.
- Juquinha não, por favor... E agora, com café da manhã e tudo, me conta essa história desde o comecinho.
- As pessoas daqui não falam sobre isso.
- Mas você não é daqui, não é? É estrangeira. Como eu.
- Como soube?
- Senti o gosto.
Ela riu.
- Bocomero sempre foi uma cidade meio esquisita, sabe? Desde que cheguei aqui, há uns vinte e cinco anos, tenho visto coisas muito estranhas. No começo, achava que era tudo balela de povo do interior, que não tem muito o que fazer. Eu me lembro da história das vacas sem cabeça. Dia sim, dia não, surgia uma vaquinha decepada. O povo dizia que era coisa do demo e ninguém tinha coragem de ficar vigiando a noite toda, à procura do culpado. O tempo passou, a coisa parou de acontecer e tudo ficou por isso mesmo. Depois, as três virgens que se mataram, todas enforcadas naquela árvore onde desmontaram sua moto. Em menos de um ano, três mocinhas se mataram ali, acredita? Teve gente que achou que haviam sido assassinadas. Outros diziam que o culpado era o padre, que havia posto a perder as moças, sabe como é... Mas claro que tudo ficou por isso mesmo. O povo daqui tem uma capacidade incrível de se acomodar e se acostumar com qualquer coisa. E vou lhe dizer uma coisa, depois de um certo tempo, a gente vai ficando assim também. Hoje nada mais me espanta.
Torta tomou mais alguns goles de café e continuou.
- Aí, depois de anos de calmaria, estas mortes começaram a acontecer. De vez em quando, aparece alguém morto no centro da cidade. Geralmente, às facadas, sempre no coração, no rosto e na cabeça, e a gente demora para reconhecer logo quem é coitado. A coisa toda começou há mais ou menos um ano, quando o Onório levou a pior. Era boa gente, mas meio burro, sabe? Vivia de catar papelão, lata e vidro. Passava o dia todo andando pela cidade e depois voltava para sua casa, um muquifo perto da ponte do cemitério. De vez em quando, levava a coleta para Canalândia, onde vendia as tralhas. Aí, gastava todo o dinheiro em um pouco de comida e muita cachaça. Quase sempre tomava um porre tão grande que não conseguia voltar para casa e dormia na praça mesmo. Ninguém se importava. Uma noite, ouvimos uns gritos horríveis, pedidos de socorro e tudo o mais. No dia seguinte, encontramos o corpo do Onório estatelado no meio da praça, com metade do rosto meio que desfeito.
- Mas ninguém fez nada? Se todo mundo ouve os gritos durante a noite...
- Você não conhece o povo de Bocomero, Juca... Depois disso, morreram alguns bêbados, uma mocinha que não batia bem da cabeça e saía à noite procurando homem, uma velha parteira que voltava de um aborto nos arredores da cidade e agora esse aí, que a gente ainda não sabe quem é. Mas, pelos gritos que ouvi ontem, é homem, com toda certeza.
- Mas e a polícia?
- Mas que polícia, homem de Deus? Você por acaso acha que o nosso único policial vai fazer alguma coisa? E, além do mais, depois que essas mortes começaram, ninguém mais sai durante a noite. O pessoal de Bocomero pode ser covarde, mas não é louco, não.
Juca saiu da casa Torta alguns minutos depois, um tanto amarelo, achando que era indigestão. Foi até a praça, certo de que acharia um corpo com o rosto desfigurado.
Achou. Deitado num banco da praça, estava um homem velho. A cabeça rachada já tinha deitado fora todo o sangue que podia e assim uma poça enorme estava espalhada por baixo do banco e na grama ao lado. Não se podia ver o que havia acontecido com um dos olhos, mas o outro estava esbugalhado, meio que solto da órbita.
Ficou enjoado e segurou o vômito para não passar vergonha, pois tinha bastante gente por lá e alguns o olhavam, curiosos.
- É o Bartolomeu, coitado... - uma senhora ao seu lado fazia o sinal da cruz.
- E quem era o Bartolomeu? – perguntou.
Ela olhou espantada, como se alguém pudesse não conhecer o Bartolomeu. Depois explicou, ainda que de má vontade.
- O último mendigo da cidade. Os outros estão todos mortos.
Juca pensou que talvez o serial killer de Bocomero tivesse algo contra mendigos. Já tinha visto isso em outras cidades muito maiores, gente botando fogo em morador de rua, por exemplo. E se algum maluco estivesse querendo “limpar” a cidade dos mendigos e bêbados? Mas se fosse assim, o que a parteira e a mocinha maluca tinham a ver com isso?
Foi pensando nessas coisas e sentindo-se cada vez mais enjoado enquanto caminhava para a oficina, na esperança de ver a Patrícia inteira. Mas evidentemente, encontrou o Zé dormindo e como Juca não tinha os dotes despertadores de Torta, emborcou a rede para que o homem caísse no chão. Teve que ouvir uma série quase interminável de palavrões, mas o homem se acalmou, finalmente, e perguntou o que ele queria.
- A minha moto, é claro. Se você não quiser arrumá-la, me ajude a levar numa caminhonete ou algo assim até Canalândia. Lá deve ter alguém que saiba arrumar uma moto.
O homem avermelhou.
- Em Canalândia não vai arranjar ninguém melhor do que eu. Deixa que monto a maldita para você.
- Patrícia.
- O quê?
- O nome dela é Patrícia. Quanto vai ficar?
- Isso a gente vê depois.
- E quando fica pronta?
- Quando estiver pronta.
Juca ainda não tinha se dado conta, mas estava entrando no ritmo de Bocomero quando topou com os termos do Zé e voltou para a casa de Torta, a tempo para o almoço. Com Patrícia se recuperando lentamente, Juca foi ficando. Seus dias eram comer, dormir, fazer sexo com Torta, e assim por diante. De vez em quando aparecia um cliente e ele ficava lendo num quartinho, ouvindo os barulhos dela na cama com outros, remoendo o ciúme com biscoitinhos de canela.

O pecado


Seus dias iam entre vaca atolada, frango com quiabo, sopa de aveia, canja, moqueca, macarronada com frango, farofa de banana, galinhada, e muito mais, tanto que nem se lembrava da morte do mendigo quando, numa noite, enquanto lia uma intrincada receita de doce de limão em um livro antigo, ouviu novos gritos na rua.
Juca não era de Bocomero. Se fosse, não teria saído correndo pelas ruas, tentando descobrir com o ouvido a origem dos gritos. A iluminação era fraca e de repente ele se viu perdido, sem saber como voltar para o sobradão. Os gritos voltaram e ele seguiu o som, branco de medo. Alguém parecia estar sendo espancado. E gemia, pedindo ajuda a Deus Nosso Senhor, Virgem Maria e todos os santos do céu.
Ficou surpreso quando viu que estava em frente à igreja, no meio da praça, e foi se esgueirando devagarinho até os fundos da igrejinha. Os gritos ficaram mais altos.
- Sant’ana minha, ajudai-me!
Ouviu sons chiados, zunindo, estalando, como chicotadas. Ia com as mãos nas paredes e sentiu chegar a porta da casa pastoral, que abriu devagarinho.
- São Sebastião, me acuda!
O primeiro cômodo era uma espécie de ante-sala, na qual encontrou um imenso castiçal.
- Quem está aí?
Entrou com força no quarto adjacente, brandindo o castiçal acima da cabeça, esperando encontrar vítima e algoz, mas não as duas coisas na mesma pessoa. Viu um homem completamente nu no meio do quarto, flagelando-se com um chicote de várias cerdas de couro e pontas de metal. A pele das costas havia se soltado em tiras, por onde corria sangue.
Por um momento, ambos ficaram parados, olhando estupidamente um para o outro.
- É a vontade de Deus. – conseguiu dizer o padre, por fim, brandindo mais uma vez o chicote, entre preces.
Juca abandonou o padre pelado, esperando que pelada estivesse também a Torta, para esquecer de tudo isso.
No café da manhã, com bolo de fécula de batata e leite achocolatado, Torta contou a história do padre.
- Isso é coisa velha, todo mundo conhece. Se você morasse aqui há mais tempo teria percebido que os gritos de quem morre são diferentes dos gritos do Padre Anaquiel, não tem nada a ver uma coisa com outra!
- Ainda bem, isso me consola muito.
- Parece que, na adolescência, ele deflorou à força uma moça e ela se matou de desgosto. Aí ele virou padre para espiar o pecado, mas parece que até hoje não deu muito certo. Aí, vez por outra, ele se flagela. Não pode se matar porque é padre, mas acho que, no fundo, é o que ele mais gostaria. Um pobre coitado...
- Pensei que era o assassino atacando outra vez.
- E por isso saiu à noite, sem arma? Pretendia fazer o quê?
- Sei lá!
- Corajoso, mas louco e burro! Estrangeiro de merda. – e saiu para a despensa.
Juca ficou um tanto decepcionado com a falta de reconhecimento de seu heroísmo por parte de Torta e decidiu sair pela cidade. Foi até a delegacia, onde encontrou o bravo guardião da ordem trocando o alpiste da gaiola de um canário.
- O que você quer? – perguntou o guarda, que chamava-se Garibaldo.
- Conversar sobre a morte de Bartolomeu.
- O mendigo?
- Esse aí. E também sobre as outras mortes.
- E o que o senhor, que nem é da minha cidade, tem a ver com isso?
- Mas sabe que estou pensando em me mudar para Bocomero? Bonita cidade. Daí, quero saber o que está sendo feito para acabar com essa onda de crimes.
- Onda de crimes? Você viu isso em algum filme, é? Eu estou achando que o rapazinho está querendo brincar de detetive na minha cidade. Não vai, não. Isso é assunto de polícia.
- Sinceramente, não me parece que a polícia esteja se esforçando muito. O senhor fecha a delegacia às três da tarde e depois nada faz. É preciso montar uma ronda noturna para impedir novos assassinatos. Mas, veja, eu não estou culpando o senhor, nada disso! Eu sei que o senhor não tem apoio policial. Por isso, tive uma ideia. Vamos montar uma comissão de moradores e escolher os mais aptos para criar uma brigada noturna. Eu mesmo farei parte. Vamos montar guarda na cidade todas as noites, em esquema de rodízio, ajudando a polícia. Afinal, eu entendo que o senhor está sozinho e aí fica difícil mesmo...
- O senhor, seu Juca, acha mesmo que alguém vai querer montar a ronda noturna?
- Claro que sim, para dar um fim nessa história!
- Então o senhor é louco mesmo. Agora, me dê licença, pelo amor de Deus!

A cidade dos mortos


Juca não desistiu. Procurou os outros poderes da cidade e foi parar na Prefeitura que, na verdade, ficava na farmácia Ouro Velho, cujo dono acumulava as funções de prefeito e também juiz de paz.
- Senhor Petrônio, gostaria de falar com o senhor.
- A respeito de farmácia, de casamento, falecimento ou prefeitura?
- Prefeitura.
- Então volte às duas da tarde, que é quando o expediente do prefeito começa.
- Com todo respeito senhor, a farmácia está vazia... O senhor não poderia me atender agora?
- Agora, só se o senhor estiver precisando de remédio.
- Eu volto às duas.
Depois de um almoço espetacular, onde Torta serviu charutinhos de folha de repolho e, como sobremesa, doce cremoso de abóbora, Juca foi até a farmácia-agora-prefeitura e sugeriu a ideia da brigada noturna ao prefeito.
- O senhor vem da cidade grande e, com certeza, está acostumado a uma outra maneira de resolver problemas como este.
- Que eu saiba, só tem um jeito de resolver o problema e é pegando o culpado.
- Nisso o senhor tem razão, eu não tenho como discordar. – O prefeito ficou pensativo por alguns minutos e depois, animado, bateu no tampo de madeira e, com ares politizados, anunciou:
- Vou marcar uma sessão extraordinária da câmara de vereadores para o mês que vem, que é quando termina o recesso de meus companheiros. Aí, levarei sua sugestão, que será devidamente discutida e...
Juca decidiu interromper o discurso, dizendo que até lá, sabe como é, poderia morrer mais gente.
- Mas, senhor, a câmara está em recesso!
- Convoque uma sessão extraordinária. Convoque a cidade inteira, se for preciso, mas faça alguma coisa!
- O senhor está muito nervoso. Eu o aconselho a voltar para casa, o que, aliás, deve ser muito bom, não é mesmo? Quisera eu poder voltar para casa e encontrar um mulherão como aquele... mas, em vez disso, encontro a Divonéia, que se há de fazer, é o destino de um homem justo. Não que isso seja muito justo, mas que se há de fazer, não é mesmo?
- Senhor Prefeito, preste atenção! Até agora, o assassino se contentou em matar mendigos e bêbados. Pegou uma parteira e uma louquinha inocente. Até agora, ninguém se importa porque ele não matou suas mulheres, suas filhas, seus filhos, só gente para quem, pelo jeito, ninguém dava a mínima. Mas isso não quer dizer que um dia isso não vai acontecer.
- Ele pegaria a Divonéia? – perguntou o prefeito.
Se as autoridades não podiam defender os cidadãos, então os cidadãos tinham que tomar as rédeas. Juca devia ter assistido muitos filmes de heróis na adolescência, ou jamais teria ido para o meio da praça, se empoleirado num banco velho de cimento, braços abertos como um Jesus na cruz, o olhar abestalhado e duas manchas redondas de suor debaixo da camisa.
- Bocomerenses! Escutem o que eu tenho a dizer!
Mas ele não estava em uma produção norte-americana. Se estivesse, com um chamado desses, centenas de extras teriam se aproximado, olhos atentos, prontos a ouvir o messias. Mas Juca teve que se esgoelar várias vezes e até deu uns pulinhos histéricos em cima do banco para que vinte gatos pingados se agrupassem ao seu redor.
- Ouçam-me, por favor! Eu falo pelo seu próprio bem! Não é segredo nenhum que há um louco homicida rondando a sua cidade. Por enquanto, ele está atacando apenas os perdidos, os pobres coitados sem rumo. Mas a cidade é pequena e até os coitados são poucos. Agora, não há quase nenhum mendigo na cidade e...
- Mas isso não é bom? É coisa de primeiro mundo! – disse uma senhora à outra.
Juca continuou, antes que outros concordassem.
- E como não há mais mendigo na cidade, o matador...
- Vai para outra cidade, ué! – disse uma velhinha. Muitos acharam muito sábia a consideração. No entanto, o bravo continuou.
- O matador vai entrar nas suas casas porque não tem mais ninguém nas ruas e ele não vai quer parar de matar!
- Como é que você sabe o que passa pela cabeça dele? Você por acaso é o assassino? – ponderou um homem, palitando os dentes, e muitos olharam para Juca, desconfiadíssimos. Ele ignorou.
- Seus filhos e suas filhas estão em perigo, Bocomero! Vamos nos unir e pegar esse desgraçado. Eu sugiro que montemos uma ronda noturna, onde os homens mais corajosos da cidade...
Nesse momento, os poucos homens que estavam à volta do orador foram se afastando.
- ... e vamos, todos juntos, como uma família, lutar contra esse poder maligno que nos oprime e tira nossa liberdade. Porque somos homens e devemos isso à comunidade! Porque temos que fazer alguma coisa antes que seja tarde demais.
- Xiii, daqui a pouco começa a novela - disse a velhinha, olhando o relógio da igreja.
- Se bem que esse moço tá melhor que a novela.
- Isso lá é verdade – retrucou a velhinha, mas mesmo assim foi embora.
E depois disso, as mulheres também foram se afastando. A plateia ficou reduzida a um moleque e um cachorro sarnento. Juca desceu do banco se sentindo tão idiota quanto pode se sentir idiota um Indiana Jones sem um Spielberg por perto.
- E você, moleque, não vai embora por quê?
Ele não respondeu e ficou olhando como se não tivesse nada na cabeça além de piolho.
- Já ouviu falar em Indiana Jones?
- Não, senhor.
- Então vem cá que vou te contar a história todinha.
Mas nem esse fracasso inicial pôde conter a vontade de Juca descobrir o que estava acontecendo em Bocomero. Passavam-se os dias e ficava ruminando a história, como quem chupa cana. Ia de bar em bar fazendo perguntas sobre as mortes.
Um dia, entrou na casa de Torta berrando.
- Já sei, já sei quem é!
- Quem é quem?
- O assassino de Bocomero!
Ela olhou para ele, divertida.
- E pode me dizer quem é?
- O guarda, está claro! Já tenho todos os dados de que preciso para ir até Canalândia e contar para a polícia de lá o que está acontecendo nessa cidade. Eles vão me ajudar e então a verdade será conhecida por todos!
Torta colocou uns pasteizinhos de queijo no meio da mesa e sentou-se, aparentemente interessada no que ele tinha para dizer.
- Só pode ser o guarda. E eu sei o motivo. Como nunca acontece nada na cidade, ele se viu dominado pelo tédio. Tem o poder para prender, mas ninguém em Bocomero comete um crime. Morrem umas vacas, umas moças se matam, mas nada acontece em dez anos! Há dez anos este homem trabalha como policial e não tem absolutamente nada para fazer. Então, para afastar o tédio, começa a matar aqueles que não vão fazer falta para ninguém. Afinal, quem ia achar ruim a morte de uma parteira mal vista porque faz abortos, uma louquinha e alguns mendigos e beberrões? Este homem é um psicopata. E ele vai continuar matando. Ele já tomou gosto pela coisa, Torta. Ele não vai parar por aqui, ouça o que eu estou dizendo!
Ele estava sem fôlego.
- Então, o que acha?
- Do quê?
- Da minha tese!
- Acho que você tem muita imaginação e que assistiu um monte de filmes ruins na infância. Come um pastelzinho, vai.
Ele comeu, mas para provar que estava errada, passou a seguir o guarda. Das oito às três da tarde, ele era o mais fiel funcionário da força policial bocomerense, até porque era o único. Não saía de seu posto para nada. Na hora do almoço, ia para o restaurante. Depois, voltava para sua mesa, mexia em alguns papéis e fechava a cadeia. Arrastava-se, molenga, até sua casa, onde lia a Bíblia até a hora do jantar. Ia para a cama e dormia o sono dos justos.
Essa rotina manteve-se inalterada por cinco longos e tediosos dias de vigília ao final dos quais, mais uma pessoa morreu. Era o Aderbal, um velho assistente do Zé da Oficina, que vivia bêbado. Na noite em que foi atacado, Juca estava vigiando a janela do guarda, que não se mexeu e roncou a noite toda. Matou a frustração do fracasso de sua tese com um porre de licor de amoras que encontrou na despensa, o que lhe rendeu uma bruta dor de cabeça.
Passada a ressaca, sentiu que estava cheio de Bocomero, com saudade de Patrícia e da estrada. Não queria deixar Torta, mas achou que não tinha jeito. Mais algum tempo naquela cidade, ia acabar se tornando um morto-vivo, como todos. Arrumou suas coisas e ia pensando num jeito bacana de se despedir de Torta e agradecer por tudo, enquanto a procurava pela casa. Encontrou-a no quintal, enterrando um pouco de lixo. Ela pareceu surpresa com sua presença.
- Será que você não pode fazer barulho quando anda, como todo mundo? Por que tem que andar por aí como um gato, espiando o que os outros estão fazendo? Já não basta a história do guarda? E do padre? Será que não tem nada melhor para fazer, além de espionar os outros? Estrangeiro de merda!
- Calma, Torta, eu...
Mas ela parecia enlouquecida. Fungou, deu a volta, largando a pá no chão, e voltou para a cozinha, pisando duro. Juca achou que ela estava naqueles dias ou qualquer coisa assim, viu que a mulher não tinha nem terminado de enterrar o lixo direito e decidiu ajudar. Então sentiu-se idiota, o mais idiota entre todos os estrangeiros que um dia pisaram ou pisariam em Bocomero.
Largou a pá, ficou um tempo no quintal e depois entrou na cozinha com um monte de roupa velha e suja nas mãos. Colocou a trouxa na mesa e, em cima dos panos, uma faca grande, bem afiada, dessas que se usam para carne.
- Por que, Torta?
Ela piscou quando viu a trouxa de roupa. Depois, sorriu, pegou o bule de café e sentou-se à sua frente, servindo-o.
- Era mais fácil me livrar da roupa suja do que tentar lavar. Sangue é difícil de sair, sabe?
- É sim.
Tomando café e mordiscando biscoitos, pareciam velhos compadres do interior trocando ideias sobre a safra do milho.
- Antes eu queimava tudo, mas agora, com você por aqui, podia chamar a atenção. Melhor enterrar.
- É verdade.
- Pensei que você descobriria tudo naquela noite em que, meio acordado, meio dormindo, ouviu os gritos. Quando voltei para casa, dei uma espiada e vi você se mexendo, lutando para sair do sono. Enfiei-me embaixo das cobertas e fiquei quietinha. Depois, me levantei e pude, com calma, tirar a roupa suja, esconder num canto e só depois voltar para a cama...
- Eu não percebi nada... - Juca estremeceu, pensando nos minutos em que Torta, manchada com o sangue de Bartolomeu, esteve deitada bem ao seu lado. - Por que toda essa loucura, Torta?
Ela ofereceu mais uns biscoitos.
- Cheguei nessa cidade há 25 anos. Era bonita, tão jovem e tão burra... Vim para trabalhar na casa de uma senhora de boa família, mas quando cheguei aqui, descobri que ela havia acabado de morrer. Fiquei sem casa, sem dinheiro, sem emprego, sem nada. Pedi ajuda a quase todo mundo nessa merda de cidade, mas ninguém quis saber. Aqui é cada um por si, você deve ter percebido. Noite após noite, eu dormia no banco daquela praça. Comia restos do restaurante, e só. Eu tinha medo de voltar para a casa dos meus pais. As coisas não eram boas lá.
Torta ergueu a mão e pegou a faca, com a qual ficou brincando, fazendo pequenos riscos na mesa de madeira.
- Uma noite, eu tentava dormir no meu banco de sempre. Estava com fome e, sabe de uma coisa, não é nada fácil dormir com fome. Foi então que um bando de arruaceiros, uns moços que viviam bêbados pela cidade, se aproximaram. Um após outro, todos, me violentaram de todas as maneiras possíveis. Eu chorei e gritei, mas a noite de Bocomero é surda, além de cega. Deu para perceber que isso não mudou.
- Esses homens eram os mendigos da cidade?
- Bebuns de moço, nunca serviram para nada! Bartolomeu, Onório, Aderbal, além de João Pinguço, o nome diz tudo.
- Mas e a parteira? E a moça?
- Pois é, tem mais. Depois que fui maltratada daquele jeito, fiquei deitada na praça, sem conseguir pensar nem fazer nada. O dia amanheceu, teve gente que me viu, sim, mas fingiu que não tinha nada ali, mesmo eu chamando. Mas uma mulher, a parteira da cidade, me notou. Ela me levou para sua casa, cuidou de meus ferimentos e me alimentou.
- Sempre tem alguém bom...
Torta interrompeu.
- Dois meses depois, quando eu já estava mais do forte, ela me deu duas opções: ou ia embora, sem nada, ou trabalhava para ela, por casa e comida. E trabalhar era ser puta. Só que a grana toda ficava com ela e se eu reclamava, apanhava.
Torta trouxe mais chá e continuou.
- Para piorar, eu engravidei. Trabalhei até o ponto em que a barriga começou a atrapalhar. Então, tive que ficar uns tempos sem fazer nada. Dia após dia, a megera me espezinhava, me chamava de vagabunda, de atraso de vida, de tudo o mais que você pode imaginar. A gente brigava muito. Um dia, ela me empurrou, eu caí e perdi a criança.
- Entendo... Mas e a menina?
- Uma tragédia, que Deus me perdoe. Ela era completamente louca e ficava zanzando pela cidade, dia e noite. Acabou me vendo enquanto dava um jeito na parteira e tive que fazer com ela também, para não contar a ninguém. Muito triste.
- Muito triste mesmo.
Juca sentiu medo de Torta pela primeira vez.
- Vai ser triste comigo também, Torta?
- Muito, muito triste. Eu peguei muita afeição por você, tão branquinho, como um anjo de Deus.
Juca sentiu dores fortes no estômago e se deu conta de que o café que Torta tomava não havia saído do bule em cima da mesa, que ele derrubou, enquanto se contorcia e caía no chão.
Somente dias depois é que soube o que havia acontecido. Zé da Oficina, contentíssimo por ter, enfim, arrumado a Patrícia, havia acabado de entrar na cozinha com a boa notícia, quando viu o rapaz despencando no chão. Acudiu para ajudar, mas levou uma facada. Torta, meio louca, distribuiu facadas para todos os lados, e até mesmo o Juca desmaiado foi contemplado com uma na coxa. Apesar de machucado e assustado, Zé conseguiu desarmar Torta e chamar o médico da cidade, que fez um curativo rápido nos dois, o suficiente para que fossem levados para o hospital de Canalândia.
Depois, recuperando-se no hospital, Juca ficou sabendo que Torta confessou os assassinatos e foi presa em Canalândia. Há quem garanta que viveu feliz, como cozinheira na prisão. Sempre que Juca conta essa história para alguém, sente que não acreditam muito nele, mas não se importa. Em toda viagem, quanto passa os dedos pelo mapa, procura e encontra Canalândia e meio que adivinha Bocomero perdida no meio do nada.