domingo, 3 de abril de 2011

O olhar da anã

Se a anã não tivesse me olhado com tanto medo, eu teria voltado? Se, durante aquele brevíssimo instante, nossos olhos não tivessem se encontrado enquanto andávamos, e as duas não tivessem o mesmo olhar de horror, eu teria diminuído o passo e andado ao lado dela até o final do viaduto? Mas a anã continuou seu caminho, não sem antes olhar para trás ao me ver parada, sem saber o que fazer.

Eu não tinha nenhum plano. Como todas as dezenas de pessoas em pleno horário de rush que passavam por aquele viaduto, à noite, bem em cima da avenida 23 de Maio, tudo o que eu queria era chegar logo à faculdade para assistir a colação de grau de um amigo, ainda mais porque, para variar, eu estava atrasada. Mas havia o olhar da anã e havia a menina. E eu parei.

Parada, fiquei um tempo olhando para aquele corpo. Deu para ver que, como eu, várias outras pessoas notavam que ela chorava e passava as mãos nos cabelos negros e longos, em desespero, balançando-se junto à grade do viaduto. Não sei de que cor a grade é durante o dia, mas pareceu-me de um vermelho-vinho de alguma forma desagradável. As pessoas olhavam, por um momento viravam as cabeças, sem diminuir o passo. Seria curiosidade ou algumas delas também teria o olhar da anã?

Encostei-me na grade, mas eu estava a muitos passos da menina para que ela me notasse. Na verdade, ela não parecia ter condições de notar alguma coisa, além dela mesma.

Pessoas se jogam de prédios e viadutos. Pessoas se jogam nas linhas de trem e metrô. Pessoas se matam o tempo todo. Isso só não é divulgado. A imprensa diz que é para evitar o “efeito Werther”, referindo-se à obra de Goethe que levou uma boa quantidade de jovens românticos a botar fim na vida. Seria uma forma de não incentivar mais suicídios. Mas eu acho que tanto a imprensa como as famílias e todo o resto só não fala em suicídio porque isso é mais tabu do que a morte “simples”, aquela que chega pelas mãos da natureza, do tempo, do destino, do acaso ou de Deus, dê o nome que quiser. Mas o fato é que pessoas se matam.

Ou simplesmente pensam em se matar. O que é uma espécie de ensaio, senão para o próprio suicídio, para alguma espécie de autodestruição, que poderá vir de mil maneiras. Faz mal pensar em morrer, embora isso seja mais comum do que as pessoas gostariam de admitir.

Sinceramente, não achei que a moça iria se matar (embora no fundo não descartasse de todo a possibilidade). Mas não conseguia deixar de observá-la, de longe. O diabo é que, se ela tentasse alguma coisa, nem à velocidade da luz eu conseguiria chegar a tempo de ajudar. Acho que fiquei esperando alguns minutos na vã esperança de que aquilo tudo acabasse e ela ficasse bem e fosse para casa. Mas isso não aconteceu. Pelo contrário, ela colou o corpo magrinho à grade e ali ficou, mais quieta, sem se balançar tanto.

Eu não sabia se isso era bom ou mau sinal e já estava me achando idiota, parada ali. Pensei em todas as vezes em que fiquei pendurada em alguma janela, olhando para o infinito lá embaixo, pensando que bastava um leve movimento. E nas vezes em que contemplei o metrô vindo até mim, assassino. E da vez em que, finalmente decidida a pôr fim na vida, subi mais uma vez ao topo do prédio que fica no topo de um lugar altíssimo, e só não aconteceu porque naquele dia, justo naquele dia, o zelador lembrou de trancar a portinhola que fecha a entrada para a cobertura do edifício, o maldito. E da arma no peito que falhou. É difícil, depois de uma dessas, reunir nova energia para uma tentativa assim mais séria. E então a gente vive.

Mas houve vezes em que fiquei bestando em atitudes não muito normais e, se alguém olhasse para mim, talvez tivesse estranhos pensamentos. Não tinha, então, nenhuma ideia de suicídio, era só desespero mesmo. Podia ser o caso da moça de cabelo comprido. Mas como saber?

E tinha a anã. Ela estava com medo também. Deixou todo o trabalho para mim, a danada. Eu vi nos olhos dela. O medo. Talvez ela já tenha se balançado perigosamente entre o lado de lá e o de cá. Talvez ela também entenda dessas coisas.

Então me lembrei de um texto que eu mesma havia escrito recentemente, para um blog, dando dicas para amigos e familiares sobre como cuidar de portadores de transtorno bipolar em crise. Deixando essa coisa de doença mental de lado e mantendo a crise, eu me lembro claramente de ter escrito algo como “apenas esteja lá”.

Eu escrevi isso porque na maioria das vezes em que precisei, ninguém esteve “lá”. Mea culpa, afastei muita gente e aí fica difícil manter-se por perto. Mas a verdade é que muita gente me viu grudada em grades de desespero, pendurada em janelas de tristeza, à beira da linha amarela da angústia, e ninguém fez nada. Houve quem “estivesse lá”, fisicamente mesmo, e simplesmente foi embora. Tem aqueles que dizem que vão estar lá, mas nunca aparecem. É difícil “estar lá”.

Eu estava lá, por obra do destino, mas mais certamente por obra do olhar da anã. Resolvi não pensar em nada. Eu não tinha um plano, uma ideia, uma forma de “chegar lá”, não sabia o que me esperava e, sinceramente, eu tinha medo. Fui andando devagar até ela, que mantinha a cabeça baixa. Fiquei à distância de um corpo entre nós duas e ali me mantive por uns bons minutos, em silêncio, olhando o movimento de uma das mais enlouquecidas avenidas de São Paulo, bebericando calmamente golinhos de uma garrafa de água que eu tinha comigo. Nenhuma das duas falou nada pelo que me pareceu um longo tempo. E, estranhamente, eu me senti muito calma.

Então eu menti:

- De vez eu quando eu venho aqui para pensar. Ou nem penso em nada, fico só olhando.

Silêncio do outro lado.

- Meu nome é Margarete, mas pode me chamar de Maga. Quer um gole de água?

- Não, obrigada – ela respondeu, tirando os cabelos da frente dos olhos inchados.

- Eu trabalho aqui perto, mas é que estou indo para a colação de grau de um amigo, aqui na Unip. – Isso era verdade.

- Eu estudo na Unip.

Foi a deixa para eu entabular uma conversa sobre o curso que ela fazia – biomedicina.

Tagarelei (eu sou boa nisso):

- Faz muito tempo que eu estudei biologia, só no ginásio, mas tinha genética e era a única coisa que eu gostava. Aliás, eu gostava tanto que achava que queria trabalhar com isso. – eu disse isso e mais algumas bobagens, numa velocidade meio atordoante.

- Eu escolhi biomedicina por causa de genética.

Ponto para mim, e por acaso! Eu não tinha mentido sobre o lance de genética. Eu realmente era doida por genes recessivos, dominantes e aquelas ervilhas todas. No ginásio, claro. Agora é ensino médio.

Então, num jorro, ela reclamou de tudo. Da faculdade, que não ia bem, pois estava pendurada em DPs. Do trabalho, do qual não gostava, mas era necessário para pagar uma faculdade que ela não tinha certeza se queria mesmo fazer. Da família, que parecia não estar nem aí. Ela disse:

- Não tenho amigos. Quer dizer, tenho um ou dois, mas acho que ninguém gosta de mim.

- Eu gostei de você e nem te conheço. – mandei, na lata. E não era mentira porque eu sentia um carinho imenso por uma menina de seus vinte e poucos anos que estava passando por coisas que eu havia passado, talvez a vida inteira: rejeição, insegurança, desespero.

E então aconteceu algo inesperadamente bom. Ela sorriu, estendeu a mão e disse:

- E eu nem me apresentei! Prazer, Daniela, mas pode me chamar de Dani.

- E você pode me chamar de Maga, lembra?

- Lembro.

Ela me contou dos problemas na faculdade, aqueles que as pessoas que não têm muita certeza do que querem na vida sentem, principalmente quando o curso está terminando e começa a pressão pelo emprego naquela área. Deve doer. Não passei por isso, tive sorte de escolher minha profissão ainda criança, mas está cheio de gente por aí que demora anos para descobrir “o que quer ser quando crescer” e nem sempre os pais estão preparados para ajudar da forma certa.

Dani me disse que tinha 24 anos. Eu lhe disse, então, que ainda era jovem e muita coisa poderia acontecer, desde ela descobrir algo em biomedicina que era seu caminho ou descobrir, ainda, um outro caminho. O segredo era se manter ligada nas coisas que ela gostava de fazer.

- Gosto de genética.

- É um bom começo.

Então me falou dos alunos brilhantes da sala de aula e de como se sentia burra, como não conseguia alcançar os outros. Não sei o que dizer nesses casos, não sou psicóloga nem pedagoga. Mas disse que ela estava se cobrando demais.

- Todo mundo me diz isso.

- Você está no fim do curso, não está? Largar no final me parece desperdício de grana e energia, já que você chegou até aqui. Por que não vai resolvendo as coisas na sua vida por prioridades? Parece que você quer resolver tudo de uma vez e isso geralmente não dá certo. Pelo menos, nunca deu para mim. Olha, tenho mais de quarenta anos e estou começando outra carreira agora. Voltei a estudar, fazendo um mestrado. Você deve me achar uma coroa e que eu devia é ficar quieta na minha, mas a verdade é que a gente vai mudando com o tempo e vai descobrindo novas coisas para gostar.

Eu estava adaptando um pouco os dados sobre a minha vida porque ela não é bem assim. Uma das únicas coisas que dão certo na minha vida – senão a única – é essa coisa de trabalho e estudo. O resto é caos. Mas está melhor hoje. Vai ver é porque minha vida se resume a trabalho e estudo. E é claro que eu não sou lá muito boa em priorizar coisas. Como Dani, eu também quero tudo aqui e agora. Como é fácil falar. Fazer, nem tanto.

Eu continuei, me sentindo um manual de auto-ajuda de segunda mão:

- Você pega leve com você mesma, termina a faculdade, mata as DPs, tira o diploma. Enquanto isso, fica de olho em novas possibilidades de emprego, nessa área ou em outras que parecerem interessantes.

- O problema é que não sei o que quero. – ela disse.

- Bem-vinda ao mundo! Na maior parte das vezes, a gente não tem lá muita certeza do que quer, mas enquanto você viver tão preocupada, tão grudada numa grade como essa, tão trancada dentro de si mesma, aí não vai ter cabeça para pensar direito ou simplesmente deixar espaço para que alguma coisa boa apareça aí dentro.

Eu já estava alcançando o grau Paulo Coelho de obviedades! Mas o mais importante era tirá-la daquele viaduto e fazê-la sentir-se melhor.

- Eu queria ser melhor. – ela disse.

- Eu também. Pode acreditar nisso. Se eu parar para pensar, piro de vez. – E eu paro para pensar nisso, claro que paro...

- É por isso que não aguento as aulas. Minha mochila está lá na faculdade. Ela assiste mais aula do que eu. Eu não consigo prestar atenção. Tem um cara na minha classe que fica ligado o tempo todo, lê todos os livros, dá raiva!

- É, eu conheço esse tipo de gente... – “Esse tipo de gente” deve ser como eu, os CDFs, nerds, geeks, Hermiones que atormentam os outros. Mas isso eu não disse para ela. – Acho que sua mochila está se sentindo muito sozinha e eu também estou atrasadíssima para a colação de grau do meu amigo. Vamos lá?

- Eu queria chegar na minha colação de grau...

- Não me parece que você está tão longe disso...

Ela se afastou das grades com facilidade e fomos conversando até a faculdade, onde nos separamos. Dei meu cartão para ela e disse para me ligar quando quisesse bater papo, sobre qualquer assunto. Um beijo, um abraço e assim acaba a história.

Bem que eu queria contá-la para a anã.